domingo, 30 de maio de 2010

ANTES MESMO DE SIMONE DE BEAUVOIR


Por Constância Lima Duarte

Possui graduação em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1973), mestrado em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1991). Atualmente é professora adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura de autoria feminina, crítica literária feminista, literatura do Rio Grande do Norte, literatura de Minas Gerais e crítica literária.    

Uma importante reedição acaba de ser realizada pela Editora Mulheres, de Florianópolis, em parceria com a Editora da PUC de Minas. Trata-se da publicação do romance Úrsula, que veio a público originalmente em São Luis do Maranhão, no ano de 1859, pela mão afro-brasileira de Maria Firmina dos Reis. A autora é considerada uma das pioneiras da ficção escrita por mulheres em nosso país, ao lado de Nísia Floresta e Ana Luísa de Azevedo e Castro. Mas o mérioto da edição não se resume a isso.

O livro permaneceu fora de circulação por mais de um século e seu resgate vem contribuir para a reescrita de nossa história literária. Até porque inaugura uma perspectiva diferenciada quanto ao trato do problema da escravidão, que não se encontra na obra dos demais escritores do período romântico. A autora - mulher mestiça, bastarda e criada sem a presença dos pais - assume o ponto de vista do outro, tanto no que diz respeito à representação dos escravizados, quanto no inédito enfoque das relações de dominação patriarcal sob a perspectiva da mulher. 

A instigante novidade do texto de Maria Firmina reside na preocupação com a história e as raízes negras, bem como na referência constante à África, apesar do enredo protagonizado pelos jovens brancos Úrsula e Tancredo. O papel atribuido aos cativos na trama revelar-se-á fundamental para o desfecho. Além disso, os escravos ai representandos em nenhum momento se identificam com os valores dominantes, nem reproduzem estereótipos, como do "negro de alma branca", a exemplo de Pai Tomás, Domingos, Isaura e tantos outros, submetidos à "consciência social subordinada", a que mais tarde se reportaria Clóvis Moura. Ao contrário, conservam sua etnicidade e suas práticas culturais como forma de resistência. E essa atitude  integra o processo de sua afirmação como sujeitos. 

"A mente! Isso sim ninguém pode escravizar!", afirma o personagem de Maria Firmina. Ao contrário do que se praticava na literatura da época, o parâmetro moral existente no texto não se coaduna com os valores sociais hegemônicos: as qualidades de Túlio são derivadas da nobreza de seu sangue africano, e se tornam mesmo elemento de comparação entre o escravo e o personagem branco: "é que em seu coração (dele, Tancredo), ardiam sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro" (grifos nossos, p.25). 

Outro fator a ressaltar é o ponto de vista gendrado, que permite a crítica às formas de subordinação da mulher no patriarcado brasileiro, herdeiro das relações coloniais. Em uma reflexão inédita na escrita de seu tempo, Maria Firmina dos Reis fala como mulher e associa  dominação de raça à de seu sexo,vinculando, portanto,gênero e etnia. O texto evidencia que a ausência de liberdade do negro emana do mesmo sistema que subordina a mulher. E isso muito antes de Simone de Beauvoir promover a equiparação dessas categorias. A mulher é o outro, tanto quanto o negro. Nesse sentido, ganha importãncia a cena em que a jovem Úrsula, presaao território familiar enquanto aguarda o príncipe encantado, inveja a mobilidade adquirida pelo escravo alforriado. 

Além disso, a autora constrói, nos personagens Túlio e Tancredo, traços do ideal do homem sensível, capaz de amar e de sofrer por amor. Este último, em tudo se opõe à brutalidade imperante nas relações entre os gêneros, de que é exemplo o próprio pai: 

                 Não sei por quê, mas nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com aquele  que     sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que, entre ele e sua esposa, estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher, e ela, triste vítima, chorava em silêncio e resignava-se com sublime brandura (p.60).   

Nessa crítica, marcada pela fala pesarosa do filho, a autora expressa sua desaprovação ao regime patriarcal. Tancredo ressalta com veemência o "gênio rude" do pai, responsável pela doença e morte da própria esposa, e pela perseguição e infelicidade amorosa do filho. Desse modo, a narrativa de Maria Firmina incorpora os nascentes valores românticos e liberais para contribuir de modo exemplar com o surgimento de um novo homem, que vai propiciar, por sua vez, a existência de uma nova mulher. 

Essa questões, que estão na ordem do dia na contemporaneidade, por si só justificam o a presente edição. No momento em que se buscam as articulações entre as 'minorias' com vistas a politicas comuns de combate à exclusão, em que se clama pela solidariedade anti-hegemônica, essa narrativa de 145 anos atrás bem demonstra o valor de nossas primeiras escritoras. 

Além do romance, a edição reproduz em apêndice o conto "A escrava", publicado por Maria Firmina dos Reis em 1887, no auge da campanha abolicionista. E novamente o leitor se depara com o discurso do outro, emoldurado pelo ponto de vista dos submetidos. O escravo e a mulher tomam a palavra e falam por todos os que não tinham voz na sociedade e na política brasileira daquele momento. 

Há que se ressaltar ainda o primoroso trabalho editorial que valoriza o romance, e a cuidadosa atualização do texto feito pelo organizador Eduardo de Assis Duarte, a partir do cotejo com as primeiras edições. A "tradução" para o português contemporâneo limitou-se ao plano vocabular, a fim de conservar a pontuação original e o estilo muito próprio da escritora. Outro ponto a destacar é o posfácio - acurado estudo crítico, que vem acrescentar dados novos à análise das obras.Assim, o leitor contemporâneo tem a oportunidade de conhecer melhor essa história oculta que o texto litetário vem iluminar, e também acrescentar uma nova escritora ao panteão das letras nacionais. 

Fonte: Blog Dom Severino Portal az
                                      

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