sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Abre a boca, fela da p...


José Maria Vasconcelos

Nos útimos dias, precisei de tratamento dentário, salvar exemplares que me restam. Só de pensar nas agruras da broca, arrepiava-me, talvez o trauma de infância, quando se falava mais em extração de dentes do que preservá-los. Por isso, sinto-me bem à vontade no consultório do urologista do que no gabinete odontológico. O dedo do médico, revestido de camisinha plástica e pomada, desliza suavemente no submundo anal, nem se assemelha à furadeira elétrica, estriDENTE, apavorante, sem anestesia e complacência , só dorzinha repugnante, broca a encher-me os olhos úmidos de ais.

A modernidade tecnológica sofisticou e evoluiu a Saúde, em geral. Falta, porém, substituir a broca ou caneta de assovio infernal por raios laser, como nas cirurgias de cálculos renais, delicadas e endoscópicas. Pior, terrível, era há algumas décadas. Perdiam-se dentes como centavos de moeda. Sobrevivi a essa geração do alicate afiado, preso ao dente, aos estalos e torções cruéis, por uma simples cárie.

Reclinar-me na poltrona, morto de vergonha, encarar o dentista, escancarar a boca, exibir o saldo do que me restou. Integro a geração dos desdentados, os acima de 40 anos. Fechei os olhos para esconder-me a timidez e flutuar em recordações da meninice. Sozinho, 8 anos, dirigia-me da Piçarra à Praça João Luís Ferreira, pacífica Teresina. Subia até o terceiro andar do mais elevado edifício, 8 andares, do IAPC, depois INPS e atual INSS. Aguardava, sentado, minha vez. Na única sala odontológica, duas poltronas, dois equipamentos dentários, dois dentistas. Já conhecia a fama de cada um: o baixinho Dr. Waldimir Hidd, feio e careca, mas extrema bondade, e Dr. Sebastião Leal, de leal só estupidez até os dentes, falava grosso, eu torcia para não ser atendido por ele. Mas foi a vez dele: “ Zé Maria, pode entrar!” Deitei-me, dentes cerrados, gelado. “Abre a boca.” Nada. “Abre a boca, fela da puta!” Senti falta da minha mãe Dedé, impossibilitada de me acudir, generosa e cristã, na Farmácia S. José, na Piçarra, pacientemente atendendo gente até das brenhas do Maranhão. Senti coisa morna umedecer-me curtas calças.

No passado, identificavam-se, facilmente, os assistidos da Previência. Bastava abrir-lhes a boca: a maioria em alguns dentes e sem amígdalas.

Na época, exodontia chamava-se extração de dente; prótese dentária era chapa, horror. Não se falava em aparelho ortodôntico, comum nos adolescentes, nem periondontia (tratamento das gengivas), nem endodontia (tratamento de canal). O que não mudou, mesmo, a estúpida engenhoca furadeira, ruído infernal. Os serviços diversificaram-se e modernizaram-se, especialmente nas clínicas particulares. A Saúde, em geral, cada vez se especializa. Há fisioterapeutas até para disciplinar incontinência urinária e fecal. Belas atendentes, elegantemente vestidas e padronizadas, dão charme e afeto, às aporrinhantes dores. Quanto ao instrumental odontológico, muita coisa se conserva do passado, até o mau cheiro de outras bocas emanado das mãos de certos profissionais descuidados.

Apesar das tantas pomadas e dedadas amaciadas e indolores, acho que é preciso inventar outras técnicas menos constrangedoras. Não só para os pacientes. Inclusive para os urologistas.


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