quinta-feira, 3 de junho de 2010

ENCONTREI RUBEM ALVES NO SALIPI

Passeando entre os stands do Salipi, parei em um que me chamou atenção pela sua variadede de livros. E ali mesmo comprei um livro do Cesário Verde poeta português do século XVIII. Como brinde ou até mesmo como consulta posterior  deram-me uma revista catálago, folheando-a, li um artigo de Rubem Alves que compartilho com você Goella leitor.
            
                                                            QUE NÃO SEJA SÚBITA

Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é melhor. Discordo. Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar á espreita na próxima esquina. Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haikai. Era assim, na antiga tradição japonesa, conforme li: diante da morte próxima, o guerreiro samurai fazia descansar sua espada e se tornava poeta. 

Não mais que um haikai...
Diante da morte é assim: dizer tudo, falando pouco, porque o tempo é curto.

Mallarmé tinha o sonho de escrever um livro com uma palavra só. Achei-o louco. Depois compreendi. Para escrever
um livro assim, de uma palavra só, seria preciso ter-se tornado sábio, infinitamente sábio. Tão sábio que soubesse qual é a última palavra, aquela que permanece solitária, depois que todas as outras se calaram. Mas isso é coisa que só a Morte ensina. Mallarmé certamente era seu discípulo. 

Curioso que na língua alemã as palavras "poema" e "denso" tenham a mesma raiz. O que revela muito. Na verdade, o poema é a fala elevada à sua densidade máxima. Nada é supérfluo. Nenhuma adiposidade. Nenhum adorno. Nada poderia ser dito de outra maneira. Pureza absoluta. Muitas palavras dentro de uma só: como se ela estivesse grávida...Uma palavra que contenha todas as outras palavras. "No Princípio era a Palavra..." O que é o oposto de nossa tolice quotidiana: sabedores das muitas palavras e ignorantes da palavra, como lamentava T.S Eliot. E é só por isso que falamos tanto...

Lembrei-me das Lições de Abismo, de  Gustavo Corção. O lamento daquele que se descobrira condenado a morrer: que pena que a vida não fosse como uma sonata de Mozart: curta, vinte minutos, mas tudo o que há para ser dito é dito. É certo que o final é sempre triste. Mas é belo. E isso é o bastante.

O último haikai é isto: o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai

Por isso tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo, como escamas inúteis. A Morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria ao luxo de escolher as pessoas com quem conversar.  E poderia ficar em silêncio, se o desejasse. Perante a morte tudo é desculpavél... Creio que não mais leria prosa. Com algumas execeções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. É certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a Morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim. 

Não, não é nada mórbido. É que não temos opções. A vida é aquilo que fazemos com a nossa Morte. Ou a olhamos de frente e ela se torna amiga, ou fazemos de conta que ela não bate à porta, e ela entra noturna, pela porta da cozinha, para nos ir comendo em silêncio.

Curioso que ela nada saiba sobre si mesma. Quem sabe sobre a Morte são os vivos. A Morte, ao contrário, só fala soabre a Vida, e depois do seu olhar tudo fica com aquele ar de "ausência que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se" (Cecilia Meireles). E ela nos faz sempre a mesma pergunta: "Afinal, que é que você está esperando?" Como dizia o bruxo D. Juan ao seu aprendiz: "A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e pergunte-lhe se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa fora do seu toque...Sua Morte o encarará e lhe dirá: "Ainda não o toquei.''' E o feiticeiro concluiu: "Um de nós tem de aceitar o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que acompanha os homens que vivem suas vidas como se a Morte não os fosse tocar nunca."

Às vezes ela chega perto demais, o susto é infinito, e até deixa no corpo marcas de sua passagem. Mas se tivermos coragem para a olharmos de frente, é certo que ficaremos sábios, e a vida ganhará a simplicidade e a beleza de um Haikai.


Rubem Alves é mineiro de Boa Esperança, bacharel
e mestre em Teologia, doutor em Filosofia e Psicanalista
pela Associação Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Possui
várias publicações, como crônicas, livros infantis, de Teologia
e Filosofia da Ciência e Educação.

Esse artigo está contido na Revista Páginas Abertas
Ano 35. n° 42. 2010  
                       
                                          
                                  

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